quarta-feira, 11 de junho de 2008

Carta aberta a Joao Melo sobre o 27 de Maio

Carta aberta ao deputado João Melo. A propósito de «O 27 e o 28 de Maio»
03.06.2008
Excelência. Queira, antes de mais, aceitar os meus respeitosos cumprimentos, desejando-lhe ao mesmo tempo êxitos, na vossa nobre função como deputado eleito por este sofrido povo.

Certamente Vossa Excelência não me conhece pessoalmente, anónimo e de base que sou. Mas penso que já ouviu falar na minha pessoa, em função dos meus pronunciamentos sobre os acontecimentos do dia 27 de Maio de 1977, do qual fui uma das vítimas, tendo sido desterrado, na companhia de centenas de jovens, para um feroz campo de concentração localizado na Comuna da Calunda, Município do Alto Zambeze, na Província do Moxico, de onde só sobrevivi por milagre do «Criador».

Endereço-lhe esta modesta carta reagindo ao artigo que Vossa Excelência escreveu, publicado no Jornal de Angola, na edição do dia 26 do mês em curso, no habitual espaço intitulado «Palavras à Solta» (um espaço que só indivíduos da vossa estirpe política têm o privilégio de nele publicar as suas ideias, porque indivíduos como eu jamais conseguem fazê-lo), cuja epígrafe é: «O 27 e o 28 de Maio», certamente em alusão aos tristes acontecimentos do dia 27 de Maio de 1977. No terceiro parágrafo do vosso artigo, Vossa Excelência diz: «Participam nessa autêntica “operação” (vou ignorar os “historiadores-activistas” portugueses) desde vítimas da repressão que se seguiu à tentativa de golpe de estado, …» É sobre a expressão «operação» que me vejo forçado a reagir.

Vossa Excelência é um intelectual de reconhecido mérito (contrariamente à minha pessoa) e, por esta razão, tem a obrigação de utilizar as palavras com rigor, ou seja, antes de usá-las, deve pensar primeiro e bem. O que Vossa Excelência quer dizer com a expressão «operação»? Salvo entendimento diferente de Vossa Excelência, entendo que uma operação é uma acção que, antes de ser levada acabo, é previamente programada, planificada, logo, ela tem de partir de um órgão estruturado e com uma direcção coesa. Ora, se assim é, então o que Vossa Excelência quer fazer crer ao público leitor, é que há um grupo de indivíduos devidamente estruturado, com a vil intenção de falsear a verdade sobre os acontecimentos do 27 de Maio. E aqui reside o cerne da questão. Fique desde já sabendo que eu, Miguel Francisco, vulgarmente conhecido por «Michel», autor do livro «Nuvem Negra», que relata apenas as situações duramente vividas naquele terrível inferno, não integro nenhum grupo estruturado, e nem sequer recebo ordens de nenhuma direcção para falsear os acontecimentos que se seguiram àquele fatídico dia 27 de Maio.

Os factos relatados no livro são factos reais, vividos e sentidos, no corpo e na alma, na companhia de mais jovens que tiveram a sorte madrasta de ter ido parar naquele campo da morte, onde pereceram, das mais variadas maneiras, centenas de jovens, todos, mas absolutamente todos, inocentes, que nem sequer tiveram a oportunidade de ser ouvidos em juízo e, no entanto, não tinham conhecimento de nada (excepto talvez apenas eu), nem se quer sabiam quem era Nito Alves e muito menos José Van-Dúnem. Quanto ao número exacto dos que lá ficaram, não me pergunte, que eu não sei. Mas lhe posso assegurar com fidelidade: foram centenas, disto não tenha dúvidas. Agora, não venha Vossa Excelência, insinuar que quem com legitimidade relata acontecimentos por si vividos esteja a participar numa autêntica «operação». No parágrafo a seguir, Vossa Excelência também diz: «Esta tentativa de revisão da história do 27 de Maio chega ao ponto de manipular o número de vítimas provocadas pela repressão estatal. Todos os anos este número aumenta, sem que sejam exibidos dados que os comprovem. Considero essa estratégia particularmente macabra e perversa…» Francamente! Se Vossa Excelência diz que há manipulação do número de vítimas é porque sabe qual é o número exacto (ou pelo menos aproximado) delas, logo, é porque participou no massacre, ainda que indirectamente. Então porquê que não vem a público dizer quantas foram? Então, acha que pessoas como eu, que sofreram na carne os horrores cometidos por indivíduos que dirigiram e executaram a repressão sangrenta em consequência dos acontecimentos do 27 de Maio, ao se pronunciarem sobre tais actos procedem a uma «revisão» da história do 27 de Maio? Acha que essas pessoas não devem falar sobre o que com elas se passou e, ao fazê-lo, considera esta uma «estratégia macabra e perversa»? Então, qual é a verdadeira história do 27 de Maio? A contada pelos que dirigiram a repressão nos anos que se seguiram ao 27 de Maio de 1977 e que certamente Vossa Excelência colaborou na elaboração dos textos? Sinceramente, não consigo perceber como é que um deputado, eleito pelo povo, assume em público pronunciamentos desta natureza. Vossa Excelência não se esqueça que, na sua maioria, todos os que em si votaram, directa ou indirectamente foram vítimas desta tragédia que agora tenta minimizar os números. Perderam famílias e vivem profundamente marcados por esta tragédia que Vossa Excelência aplaudiu e, por isso, peço-lhe que ao menos que tenha um pouco de sensibilidade e consideração por estas pessoas que o elegeram. Diz ainda, Vossa Excelência, no penúltimo parágrafo do vosso artigo: «…tendo Nito Alves e o seu grupo sido responsáveis pelo assassinato de alguns dos mais brilhantes dirigentes políticos da altura. No dia seguinte, o Estado desencadeou uma intensa repressão que, sendo legítima à partida, se transformou rapidamente num momento de excessos, arbitrariedades e oportunismos, de consequências muitas delas irreparáveis…» Novamente aqui entendo que houve falta de rigor de vossa parte. Com o devido respeito que lhe devo, de que legitimidade do Estado Vossa Excelência se refere? A política ou a jurídica? Se for a legitimidade política do Estado, ela se afere pelo critério das maiorias nas urnas, ou no mínimo, num órgão colegial onde o assunto devia ser discutido até à exaustão. Ora, segundo sei (Vossa Excelência talvez também saiba), as questões que estiveram na base dos acontecimentos do dia 27 de Maio não foram discutidas com a profundidade e o rigor que o assunto impunha por tratar-se de questões políticas muito sérias, ao nível do Comité Central do Mpla. Nem sequer foi dada a possibilidade a Nito Alves de defender-se naquele órgão máximo do movimento que dirigia o Estado naquela altura, através do documento por si elaborado em sua defesa. Se se refere à legitimidade jurídica do Estado, a coisa fica ainda mais complicada. Porque? Explico-me. Salvo também entendimento diferente de Vossa Excelência, entendo que o Estado, sendo uma instituição, é uma ideia. É algo que perdura no tempo e se distingue dos membros que o personificam e agem em seu nome (através dos seus órgãos) numa determinada etapa ou fase da sua existência. Se essa asserção é verdadeira, então a forma de proceder dentro do Estado, enquanto instituição, é através das normas jurídicas, do Direito por si criado, traduzido em diplomas legais que tem no seu vértice a Constituição. Logo, a legitimidade do Estado repousa no cumprimento escrupuloso das normas jurídicas por si criadas. E aqui coloca-se uma questão que é a seguinte: Depois do dia 27 de Maio de 1977, as normas jurídicas que então vigoravam no país foram respeitadas? As pessoas foram julgadas? Tiveram direito à defesa como tiveram o próprio Presidente Neto, o Costa Andrade «Ndunduma» e outros, quando detidos pelo poder colonial que então «combatiam», materializando o princípio da presunção da inocência consagrado na Lei Constitucional então em vigor? E Vossa Excelência fala em legitimidade? Tenha a santa paciência! Não venha, agora, Vossa Excelência subterfugiar-se numa pretensa «legitimidade do Estado» para tentar justificar os crimes que determinadas pessoas dolosamente cometeram com o vosso apoio, aproveitando-se das estruturas do Estado. Porque sendo o Estado uma instituição, o que se deve exprimir dentro dos seus órgãos é a sua vontade normativa e não a vontade psicológica dos membros que personificam os referidos órgãos. Só assim os actos praticados pelos seus órgãos são juridicamente imputáveis ao Estado. Caso contrário, tais actos, ao agirem ao arrepio das normas que conformam a ordem jurídica do Estado, são passíveis de responsabilidade disciplinar, civil e até criminal, consoante a gravidade da infracção. Ora, exactamente o que se passou nos dias, semanas e meses após o 27 de Maio, foram actos bárbaros, praticados por indivíduos que agiram ao arrepio das leis que então vigoravam na República Popular de Angola, aproveitando-se das estruturas do Estado com a colaboração de forças estrangeiras. Por esta razão, em rigor, tais actos não devem, em princípio, vincular o Estado. Esta é que é a verdade, nua e crua, Sr. Deputado. E por isso mesmo amarga. Não são apenas excessos como insinua – outra falta de rigor de vossa parte. Porque, quando fala em excessos, está a admitir que foi perfeitamente legítimo terem sido mortos de forma selectiva e sem julgamento um determinado número de angolanos como retaliação às mortes de oito ou nove dirigentes, numa proporção de um por dois ou três mil, e o resto são excessos. Ou seja, na vossa maneira de ver a questão, era mesmo necessário matar-se um bom número de «fraccionistas», só que, se matou um pouco a mais. Daí os excessos. Quanto ao resto que escreveu no artigo, não comento. Sou de opinião que promova um debate público na União de Escritores Angolanos, enquanto escritor, naqueles vossos debates «Maka à Quarta-feira». Convide também os seus companheiros: o Nudunduma e o Pepetela, já que todos vós pertencestes à tristemente célebre «Comissão de Lágrimas». Terei muito gosto de lá estar para um debate franco e aberto. Aproveite a oportunidade enquanto a coisa está quente. Desta vez não é preciso bater no ferro quente enquanto o ferro está em brasa, numa clara incitação à matança de compatriotas vossos que deram o melhor de si para que o país se tornasse independente, muitos deles, na sua maioria, inocentes. Concordo, plenamente, com Vossa Excelência, quando insta a Direcção do país em discutir este assunto em público, para que nos possamos reconciliar dentro do próprio Mpla, uma causa pela qual me venho batendo há muito, dando a cara, com todos os riscos possíveis que corro. Tenho fé de que tarde ou cedo este dia chegará e todos nós, num cortejo da história, enterraremos os nossos ódios e mágoas que carregamos há mais de trinta anos.

Luanda 27 de Maio de 2008.
Miguel Francisco «Michel»
(Sobrevivente do 27 de Maio)

Fonte: semanário angolense Edição nº 267

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